R.P.
Citei "Éloge de L'Amour", sobre a passagem do preto e branco para o colorido, porque Godard estaria fazendo um claro jogo: com uma tecnologia contemporânea, de agora , ele filmava depoimentos históricos; ele usava a técnica de fusão de imagens para salientar aspectos líricos fora-de-moda( o abat-jour do casal de resistentes no céu, a canoa sem poder navegar quase que é uma pintura, à maneira das "naturezas-mortas"). E em ÉLoge de L'Amour a cor insiste. O personagem do Bruno Zulu anda no meio da velocidade contemporânea de Paris, o painel do seu carro incandescendo de luz. Uma imagem-desafio. Imagem desafio no plano do painel do carro que sempre me lembra os efeitos de 2001 ( num filme com esta data de produção).
A passagem do pb para a cor é uma nota de cinismo. Um afrontamento. De enquadramentos sofisticadíssimos passamos para uma câmera fixa, cores exageradas, comportamentos burgueses alcoolizados. Há uma clara diferença que o corte súbito só pode indicar que a uma beleza documental e apaixonada, a uma beleza de recriação da estética de Wells passa-se para o imobilismo, passa pelo plano no limite de registrar um deboche. Fiquei pensando neste plano fixo, nesta câmera parada tantas vezes usada pelo cinema underground para frisar a vida que acontecia num plano no limite do tempo e espaço.
A cor nitidamente artificial joga com o documentário de Wells e a recriação de seus enquadramentos em "O Signo do Caos". Um jogo também no limite. Se em "Eloge de l"Amour" o limite é um desafio ( sim porque com esta tecnologia passa-se do registro da história para a velocidade contemporânea e a pergunta no áudio é sobre como podemos chamar este movimento que vivemos right and now).
A recriação dos planos de Wells tem como referência as imagens, ao fundo, da singeleza do documentário de Wells . Estas imagens estão bem longe de serem aquelas que o consagraram, como em Citzen Kane. Então, isso é curioso... O filme de Sganzerla mantém seu cinema tanto singelamente documental como seu sofisticado expressionismo... São paixões de Rogério... e liberdade, despojamento de Wells.
Mas quis dizer das imagens no limite ( por câmera digital) em Éloge de L'Amour e imagens no limite, no corte súbito, surpreendente, para a cor que choca o público, pela surpresa... Poderia ser um jogo... Mas, enfim... É que me interesso muito, atualmente, por levantar o que faz parte da economia que gera um filme... O que faz parte... Tanto o artístico como o técnico (este não conhece muito...)... Este levantamento como faço para (re)ver os filmes... Até agora.
À tarde, antes de assistir, pela primeira vez "Copacabana, Mon Amour", que passou à noite, assisti ao "Grito da Terra" que é um filme que nunca vi... Com Helena também. Ih quanta coisa da economia do filme eu notei, um filme que não tem a mínima importância ("Grito da Terra"), mas cheio de coisas para serem observadas...
Fiquei maravilhado com a paixão de "Copacabana, mon AMour"
Você sabe que "Copacabana, Mon Amour" foi filmado por uma lente de cinemascope com que Fellini trabalhou?
M.M.M.
Sim, exemplificou muito bem a comparação. Há um 'limite', uma fronteira em ambos os filmes quando ocorre a transição da cor, como se cada uma fosse um território, ultrapassado pelo filme, pelos personagens, pelo artista. Pode haver sim uma correspondência que não seja apenas ocasional como se nota nos letreiros informativos quase idênticos no início de Made in U.S.A. e O Bandido da Luz Vermelha.
Grito da Terra é um desconhecido para mim, não conhecia. Fico reparando nesta sua tendência atual ao fator da economia, o tal procedimento conciso, uma aproximação nuclear, mais do que expansiva, talvez. Agora Copacabana Mon Amour possui uma energia orgânica, pois não é bem plasticidade. Há uma camada na imagem, uma substância solar que contorna os espaços em branco ou amarelo, laranja, dos personagens, principalmente em Sonia Silk. E algum crítico disse alguma vez ou um jornalista algo que é muito perceptível, o quanto O Bandido da Luz Vermelha e A Mulher de Todos possuem naturalmente um clima mais paulista senão paulistano como em Bandido enquanto Copacabana Mon Amour e os filmes da fase Belair conseguem ter a atmosfera carioca. Mas não pelo simples fato das filmagens, locações, residências, mas sim por terem uma espécie de ritmo, diálogos, montagem, clima mesmo muito peculiar.
Não consigo ver tanto Alphaville em O Bandido. A música? Não concordo querido. São diferentes. Nesta época nem pode se dizer tanto se o preto e branco de Sganzerla era proposital como no filme de Jean, já que muitos filmes do começo da década de 70 eram em preto e branco por dificuldades mesmo. Agora aquele letreiro luminoso é Made in U.S.A. .
Eu sabia que foi em Cinemascope, mas Fellini eu não sabia!
Este letreiro do começo de O Bandido é idêntico ao letreiro no início de Made in U.S.A., a diferença é que neste o letreiro é em vermelho. Inclusive o estilo da 'mensagem' é parecido, mesmo que a informação seja diferente. Eu não consigo reconhecer a música de Alphaville em O Bandido, estou sendo muito sincero. Eu acho que o fato de ambos serem em preto e branco esteja um pouco facilitando a sua aproximação entre um e outro.
É verdade. Acabo de colocar aqui O Bandido. A música não é a mesma, ela, digamos, tem um movimento exatamente igual a de Alphaville, mas não é a mesma. Não entendo os termos técnicos musicais, mas há um 'momento' em que ela se torna a trilha. Mas o letreiro é Made in U.S.A. .
R.P.
Mas MArco, o BAndido e ALPHAVILLE
ALPHAVILLE, MARCo. O Bandido começa como Alpha 60, criatura! Até a música é a mesma!
Que Made in Usa, MArco? O BAndido é puro Alphaville! Ora essa! vi ontem, o Bandido! Aquele letreiro novaiorquino... A música, ouvi ontem nuns documentários sobre o Rogério é a música de Alpha 60, ora essa!
Made in Usa e O BAndido? Aonde?
M.M.M.
Mas não é uma plasticidade científica, não sei foi usado algum tipo de filtro, creio que não. Eu digo orgânico porque o ambiente impregna na lente. É isso que eu quis dizer quando falei em orgânico e não plástico.
R.P.
Pôxa, Copacabana mon Amour é pura plasticidade! Ora essa! Orgânico? Bem, orgânico... Sim mas pura plástica. Aliás, como falastes tão bem quanto Às cores...
Pode até ser, já que falas... Mas Bandido é contemporâneo de Alphaville. Bandido é um filme que dialoga sim com Alphaville... A idéia urbana, neste aspecto. Uma cidade dominada. Também. Mas não diria isso. Digo que Bandido começa EM Alpha 60!Só!
Ah sim. Exato. Um amiguinho meu com quem tenho assistido aos filmes falou sobre isso como a luz impregna o celulóide... Essas cores que falastes tão bem... Sim. É. Uma luminosidade algo, também, enevoada... Ás vezes o filme sai do foco.
M.M.M.
Mas O Bandido é contemporâneo de ambos se formos pensar em datas. A idéia urbana eu posso concordar um pouco, mas Alpha 60 em O Bandido ? Você fala das vozes off masculino e feminina ?
Sim, é um impregnar mesmo, não? E há sim essa coisa enevoada, uma luminosidade assim. Não é uma luz branca e não também um efeito de gelatina, por exemplo, inclusive por serem externas, locações. É uma fabulação nada artificial, uma fabulação real na fotografia, é carioca sem nenhum maneirismo. E às vezes o foco parece se perder, como se houvesse uma película transparente que surgisse sobre o filme da câmera. É o fantasma, o pesadelo ao vivo, na própria visualização.
R.P.
Made in Usa, um filme sobre discursos. As vozes do Bandido são da fonte radiofônica das radionovelas... Pop.
M.M.M.
Então, é uma pluralidade radiofônica. Não tem o tom de um Alpha 60. E eu não quis dizer que ele é Made in U.S.A., mas que o começo, os letreiros me remetem ao letreiro praticamente idêntico ao outro.
R.P.
Acho tudo perfeito neste filme. Meu amiguinho comentou algo maravilhoso. Foi para mim maravilhoso: há as danações e... Os silêncios... Notaste?
Ah porque fica esse negócio de ano sessenta, anos setenta sei lá o quê! Em O Signo a garota colorida pergunta “década"?
M.M.M.
Não me lembro tanto dos silêncios. Eu assisti numa cópia ruim em vídeo. Mas quando você fala das danações, me parece um grande jardim terreno com seus santos e demônios, morros e passarelas, cantos, batuques e o brilho no mar, nos cristais da areia, nas circularidades da câmera, dos personagens andando, se mexendo.
É. Eu penso nisso em relação aos anos noventa. Década? Foi uma coisa realmente estranha aquela década. Agora os sessenta, os setenta têm o seu inventário de elementos, objetos, ícones. Agora se você olhar pro cinema mesmo, os filmes dos anos oitenta, algo começa. A imagem é diferente, não sei se é culpa da Kodak, mas algo estranho está visivelmente ali.
R.P.
É... Não sei, para mim é um filme contemporâneo. Visionário. Completamente visionário. o Rio, de Copacabana inclusive, e muito inclusive,mesmo, passa pelo fantasma alegórico, bufão mesmo. Como aquele.
M.M.M.
Seus filmes são contemporâneos. A Mulher de Todos é para mim um grande exemplo de atualidade, de êxtase, vigor de cinematografia, diálogos, movimentação cênica, montagem.
R.P.
Este filme [Copacabana Mon Amour] fala de hoje. Ângela Carne e Osso é uma mulher de hoje. Não digo naturalisticamente... Mas de sintomas. Vários sintomas. Por exemplo: Rogério, numa entrevista, diz que queria falar da favelização de Copacabana. Guará com camisa tradicional de malandro e canivete, de malandro, no Copacabana Palace! Há milhares de Sonia Silk em Copacabana. Fiquei pensando naquele enredo, nenhum enredo sim. Nenhuma história, sim. Uma proposição SIM. A forma como os personagem acontecem... Isso é muito livre.
M.M.M.
Sintomas de um bairro, uma cidade, um país; do próprio cinema deste país. Sintomas sociais, culturais, alucinantes, desmemoriados, perambulados pela narrativa, pela história, os passantes, passistas, possuídos, adormecidos, acalorados, dançantes, ausentes, trausentes, videntes.
R.P.
Adorei isso! Como, por exemplo, Sonia Silk se pinta no banheiro, agoniada... a luta com o irmão... Como desce a favela... Para ser cantora de rádio que é um mito carioca dos anos 30... As cantoras de rádio. Tão bem vivido período por Leniza Meyer, em A Estrela Sobe do escritor MArco Rebelo... Gostei tanto disso que pensei trabalhar em algo... Assim... Um trabalho universitário, talvez. Rogério mexe com mitos e... Signos... a camada verbal se sobrepõe como uma fantasia, uma alegoria verbal.
M.M.M.
“a camada verbal se sobrepõe como uma fantasia, uma alegoria verbal."Exatamente. Ele agrega os signos do ambiente, primeiramente enquanto Brasil e depois enquanto território característico seja a metrópole, a ilha, a praia, os quartos de hotel, ruas e o movimento é de ida e volta pois do característico se vai novamente ao país e deste às origens, da nouvelle vague aos ritos africanos.
R.P.
Aí você tem as imagens e o verbo... Os mitos (Rogério sempre reverencia os da música...) e a realidade invadida pela experimentação... Gosto muito disso... A experimentação invade as ruas... A realidade é tocada e não por naturalismo que a mimetize. Há um choque. E uma vida independente: o discurso verbal e as imagens. É. Acho que é esta a proposta artística de Rogério em Copacabana, Mon Amour, em Sem Essa Aranha... É meter a ficção, o discurso alegórico no meio das realidades. Que oferece as possibilidades.
M.M.M.
É. Ela vai às ruas, invade num passeio livre, não importa se natural ou orquestrado, pois a vida se encarrega de servir ao filme todas as possibilidades infinitas, uma vida independente como você disse.
.
R.P.
Vi outro dia um filme do Fritz Lang, Vive-se só uma vez. E fiquei pensando no amor auto-suficiente por causa de um personagem feminino que ama um bandido.
Num filme de Rogério (não sei qual, pois acho que foi num documentário, passaram dois na mostra sobre ele) acho que é no Bandido, sim... A narração diz “não somos ninguém sozinhos, mas e daí?”
M.M.M.
Isto me lembra Band a Part quando se fala que as pessoas apesar de juntos nunca forma um todo ou algo parecido.
Um amor auto-suficiente. Seria aquele onde a partida e o destino são os mesmos?
R.P.
O amor auto-suficiente? Começa e termina no mesmo ponto? É isso?
M.M.M.
É? Não sei. Quis lançar a questão. Seria ele o oposto da flechada de Eros que em vez de reta é curvilínea?
R.P.
Bem, de certa forma. O amor continua o mesmo, no filme do Lang. Mas...
M.M.M.
Continuar o mesmo. Talvez sim. Entraríamos na questão de o objeto continuar ou não sendo o mesmo independente do caminho que ele faz, retilíneo ou curvilíneo.
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